segunda-feira, 26 de julho de 2010

Teimoso

Alex subiu as escadas com o peso de um dia inteiro sobre os ombros. Entrou em casa e esvaziou os bolsos na mesa da sala. Junto com a carteira e papéis, um grampo de cabelo de pouco antes.
Os encontros de fim de tarde vinham se tornando cada vez mais raros e breves. Ana chegara ao Café Paris com seu atraso regulamentar de quinze minutos. Sentou-se ofegante.
– Desculpe a rebeldia do penteado – disse, com o sorriso semicerrado, tendo um grampo entre os dentes e a franja castanha solta no rosto.
Durante a rápida conversa, ela repetiu o gesto diversas vezes com outros grampos que pulavam da bolsa, até se despedir e sair apressada. Alex se habituara ao ritual há alguns meses, quando ela comunicara, solene, a decisão de mudar o corte. Desde então, Ana deixava pistas por onde passava.
Agora, sentado no sofá de casa, Alex brincava com o objeto esquecido sobre a mesa do Café. Com os dedos afastou as apertadas pernas do grampo, seduzido pela sua singular anatomia: uma fina e reta; outra, ondulada. Um instrumento da vaidade sem vaidade alguma. Feitos para não serem notados, por isso tão esquecidos.
Lembrou-se das tardes na casa da tia cabeleireira, depois da escola. O salão improvisado na garagem. Cheiro de química a arder os olhos. Chá com bolacha e revistas, mulheres distraídas com decotes ousados. Grampos por todos os lados. A pobre tia cansada de espetar o dedo nas hastes pontiagudas, sempre a reclamar. Jamais desconfiou do pequeno sobrinho, que folheava catálogos de lingerie, roendo a resina das pontas de caixas inteiras de grampos para poupar as unhas.
Alex andou pelo apartamento silencioso, relembrando vestígios de Ana já deixados pelos cômodos. Ela, que nunca dormira naquela casa, com frequência demarcava território com um ou outro grampo: em cima da geladeira, no sofá da sala, na pia do banheiro, dentro de um livro inacabado. De propósito?
No quarto, Alex tirou do criado mudo uma caixa velha de charutos. Colocou o novo grampo em companhia de outros vários, com detalhes de estrela, trevo, coração, com fuxicos, fivelas coloridas, tic-tacs. Pequenos fetiches de boca, mãos, madeixas, nuca.
Imaginou se algum dia acordaria vendo Ana, preguiçosa, sorriso semicerrado, prendendo os cabelos já longos. Ele teria a felicidade espalhada em grampos por toda a casa, sem nunca mais precisar guardar para si grampo algum.

3 comentários:

  1. Me agrada! Como usuária dependente de grampos, posso dizer... me agrada!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Que detalhe esse do grampo! Ana sabendo disso vai invejá-los, grampos admirados. A palavra transformou o detalhe em declaração. Sabe fazer isso quem tem dominio da palavra. Gostei da breve passagem no passado, num salào de garagem enfeitado com um menino que rói grampos pra poupar as unhas. Quanta vaidade! Belo texto. Coisas incriveis se diz com simplicidade quando há sensibilidade. Transformou o grampo!

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